Âé¶¹ÊÓÆµ

Em comemoração aos 38 anos da Universidade, a solenidade inédita entregou os diplomas à deputada federal e à família do falecido compositor na noite de sexta, 25

Publicada em 28/04/2025

Tomado por uma comoção coletiva e aplausos ressoantes, o teatro do Campus Dom Bosco, da Universidade Federal de São João del-Rei (Âé¶¹ÊÓÆµ), foi palco de uma cerimônia histórica na noite de sexta-feira, 25: a deputada federal Célia Xakriabá e o músico Ian Guest (in memorian) receberam títulos de Doutor Honoris Causa por suas contribuições à sociedade brasileira. A solenidade, inédita na instituição, contou com a presença de Célia e dos irmãos de Ian, Gabor e Julia Geszti, para encerrar as celebrações dos 38 anos de federalização da Âé¶¹ÊÓÆµ. 


Embalada por diversas homenagens aos mais recentes Doutor Honoris Causa, a cerimônia reconheceu que a ativista e o compositor beneficiaram “de maneira notável as ciências, as letras, as artes e a cultura” deste país diverso que é o Brasil. Apresentações musicais, produções audiovisuais e palavras de profunda gratidão remontaram os percalços e conquistas marcantes para os respeitáveis legados de Célia Xakriabá e Ian Guest. 



“Esse título de Doutor Honoris Causa é pela causa da luta, é pela causa da floresta, é pela reparação histórica”, enfatizou Célia quando perguntada sobre o recebimento do título. A deputada mineira reiterou a importância da cerimônia para uma produção acadêmica de conhecimento atrelada à valorização dos saberes dos povos originários: “Nós, povos indígenas, também somos doutores da ciência, do tempo, somos doutores da floresta, da vida”.


Imbuídos de orgulho pelo reconhecimento do trabalho do irmão, Gabor e Julia Geszti definiram a conquista em uma palavra: dedicação. “Como era importante para ele transmitir o conhecimento… Para ele, isso era importantíssimo. Então, no fim das contas, essa [a concessão do título de Doutor Honoris Causa] seria uma recompensa”, explicou Gabor, que recebeu, junto à Julia, o diploma em nome de Ian.


Na mesa, também estavam presentes o reitor da Âé¶¹ÊÓÆµ, Marcelo Andrade, e os professores Maria Leônia Chaves de Resende e Guilherme Caldeira Loss Vincens, proponentes das concessões de títulos à Célia Xakriabá e a Ian Guest, respectivamente. 


Para o reitor, os diplomas da ativista e do músico representam uma resistência significativa à crescente onda neofascista mundial, que ameaça a democracia e semeia o ódio. “Frente a isso, precisamos nos levantar com coragem e firmeza, em nome da paz, da justiça e da dignidade humana”, concluiu Marcelo. Na avaliação dele, os títulos concedidos à Célia e Ian incentivam a valorização do ofício de pessoas que acreditam, transformam e sonham, justamente “porque seus trabalhos, suas lutas e seus legados são inegáveis”.



Célia Xakriabá: aquela que foi a primeira, mas não permitirá que seja a última


Ovacionada, Célia Xakriabá subiu ao palco do CDB emocionada. Filha de D. Bia e do líder indígena Hilário Corrêa Franco, bisneta de Manuelzão e neta de José de Souza Freire, a deputada ressaltou que a conquista “representa uma causa que, por mais de 1500 anos, foi ocultada de um Brasil tão profundo”. As heranças de Célia seguem vivas com ela, que destacou o prestígio da condecoração não somente à sua trajetória individual, mas à toda a causa que a circunda. “Esse título de doutor é para o meu avô, é para Rodrigão Xakriabá, é para a dona Elisa, que na chacina de Rosalino Xakriabá estava grávida e teve seu braço baleado. Esse título é também para Xicão Xukuru, para a maninha Xukuru. Esse título é para Galdino, que foi incendiado em Brasília. Esse título é para Tuíre Kayapó, uma mulher que colocava a mão no dedo, na ferida, na cara de parlamentares, porque sabia que nós chegaríamos nesse lugar. Assim esse título, não é por causa, é pela causa”, afirmou a deputada. 


Desde muito jovem, Célia se envolveu ativamente na luta pelos direitos dos povos originários. Aos 13 anos, participou da criação da Articulação Rosalino, um movimento das populações tradicionais do Norte de Minas que luta pela defesa territorial. Em 2009, começou sua graduação em Formação Intercultural para Educadores Indígenas, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em 2015, Célia assumiu a coordenação da Educação Escolar Indígena do governo de Minas. Uma de suas principais bandeiras foi a luta por uma educação diferenciada para os povos originários do estado. Assim, ela seguiu avançando na academia e, em 2016, fez mestrado em Desenvolvimento Sustentável na Universidade de Brasília (UnB).


Em 2022, Célia rompeu barreiras e se tornou a primeira deputada federal indigena de Minas Gerais. Eleita pelo PSOL com mais de 100 mil votos, a ativista ampliou a chamada bancada do cocar. Célia Xakriabá voltou a fazer história em 2024, ao conquistar o título de primeira mulher indígena doutora pela UFMG, com seu doutorado em Antropologia. Por isso, afirmou: “Eu sou a primeira, mas não serei a última”. 


“Que noite!”, exclamou a professora aposentada Maria Leônia, do Departamento de Ciências Sociais da Âé¶¹ÊÓÆµ, quando esteve diante do palanque para dizer algumas palavras sobre Célia Xakriabá. A professora discorreu sobre a relevância do reconhecimento do legado da ativista, já que o título “tem uma longa história partilhada que liga a história das universidades à luta dos povos indígenas”. Após uma retomada histórica dos processos de busca por reparação para a concertação da paz e concórdia entre os povos, Maria Leônia reiterou que, ao outorgar o título de Doutora Honoris Causa à Célia Xakriabá, “a Âé¶¹ÊÓÆµ abre-se a uma ecologia de saberes, de trocas e partilhas entre as formas de pensamento ocidental e ameríndio”, prosperando, assim, “o princípio de reparação e até mesmo ultrapassando-o”. 


Já a deputada iniciou seu discurso cantando porque, segundo ela, é uma forma de “fazer acordar a casa-grande”. Em seguida, Célia tratou da necessidade de “indigenizar o pensamento” das universidades, uma vez que “a ciência só tem força se tiver a presença da diversidade”. A ativista discorreu sobre o espaço que ocupa no Congresso e na produção científica, declarando que as mulheres indígenas estão ocupando cada vez mais esses locais para “reflorestar e matriarcar a política e a universidade”. Para ela, a Âé¶¹ÊÓÆµ nunca mais será a mesma, porque, ao conceder o título à ela, a instituição também torna Doutora Honoris Causa “a terra, a água, a montanha, a floresta”. O discurso da deputada emocionou o público, que levantou para aplaudí-la.


“Nós somos o povo que resiste pela força do cantar. Antes do Brasil da coroa, existe o Brasil do cocar”, finalizou Célia com rimas que ecoaram - e pra sempre ecoarão - pelos corredores da Âé¶¹ÊÓÆµ. 


Ian Guest: aquele que, sendo, ocupou-se bastante


“Ser me ocupa bastante” foi o que disse Ian Guest durante muitos momentos de sua vida. Sendo - e, assim, ocupando-se -, o músico, compositor, arranjador e professor construiu uma carreira em que, de acordo com Guilherme Vincens, “para quem é da Música, a justificativa de mérito nem é necessária, pois o legado de Ian Guest ressoa, direta ou indiretamente, na vida de todos os músicos deste país”.


Nascido na Hungria em 1940, Janos Geszti chegou ao Brasil com sua família em 1957 fugidos de um levante popular de cunho nacionalista que se insurgiu contra a União Soviética. Neto e filho de músicos, teve sua iniciação musical aos seis anos de idade e, alguns anos depois, foi da primeira geração de jovens musicalizados através do Método Kodály no Conservatório de Budapeste. Décadas mais tarde, Geszti foi o introdutor deste método no Brasil.


Em solo brasileiro, a família Geszti morou em Copacabana, no Rio de Janeiro, nos anos de efervescência e gestação da Bossa Nova. No Brasil, adotou o nome Ian Guest, e sua atuação profissional começou com trabalhos em gravadoras e estúdios. Depois de anos trabalhando com produção musical em estúdio, Guest passou a dedicar as décadas seguintes de sua vida ao estudo, produção de materiais didáticos e à formação de músicos brasileiros. Cursou Composição e Regência na Universidade Federal do Rio de Janeiro, estudou na França e graduou-se na Berklee College of Music, em Boston. Em 1987, fundou o Centro Ian Guest de Aperfeiçoamento Musical no Rio de Janeiro e, posteriormente, em Minas Gerais.


Ian Guest residiu em terras mineiras por quase três décadas e faleceu em abril de 2022 em Tiradentes. Até seus últimos dias de vida, esteve em plena atividade de ensino no Centro de Referência Musicológica José Maria Neves da Âé¶¹ÊÓÆµ e na Bituca - Universidade de Música Popular, em Barbacena.


Para os irmãos do músico, a condecoração do título de Doutor Honoris Causa a Ian Guest surgiu como uma homenagem póstuma. Julia Geszti contou que “o sentimento é duplo: é uma mistura de alegria e, ao mesmo tempo, de tristeza, porque não é ele que está recebendo pessoalmente". Apesar da ausência do irmão representar um vazio que nunca será preenchido, Gabor contenta-se ao dizer que sabe “o quanto ele buscou isso, o quanto foi importante para ele, e não deixa de ser uma honra pra gente. Isso é uma coisa que valoriza o trabalho da vida inteira dele”. 


Guilherme, que teve aulas com Ian, encheu os olhos de lágrimas ao falar sobre o saudoso mestre. Ao tratar da importância da figura de Ian Guest no ensino musical brasileiro, o docente da Âé¶¹ÊÓÆµ disse que, de sua geração, “dificilmente encontramos algum músico que não tenha estudado algum tipo de curso com o professor”. Para além do espaço escolar e acadêmico, “Ian foi uma figura humana íntima, que distribuía pílulas filosóficas de muita sabedoria e poesia para os alunos sobre a vida e a arte”, afirmou Guilherme. Por fim, Vincens agradeceu à família do músico por doar todo seu acervo à Âé¶¹ÊÓÆµ e sentiu muito pela ausência do educador neste momento tão simbólico: “Lamentamos que o mestre não esteja aqui em vida para receber o tão merecido e aguardado título, mas acreditamos que o reconhecimento é uma forma de homenagem, agradecimento e, de certa maneira, o acerto de uma dívida que tínhamos com o nosso querido mestre”.

 

Neste link, você pode acessar da cerimônia.



 

Texto: Clarice Muscalu (Ascom)

Fotografias: Igor Chaves (Mosaico) e Laura Brêtas (Ascom)